Decisão do STF que autoriza prisão a partir da segunda instância não se aplica à Justiça do Trabalho

por Christina Aires Correa Lima

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EDIÇÃO 3 - JULHO 2018
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Relatório

Trata-se de análise preliminar dos possíveis efeitos da decisão do STF que, em matéria criminal, mitigou a presunção de inocência para autorizar a prisão em 2ª instância, sobre as execuções trabalhistas em processos ainda não transitados em julgado, especialmente no que diz respeito à satisfação dos créditos (levantamento de valores depositados, por exemplo).

 

Opinião

1- Dos fundamentos da decisão que aplicou a decisão de execução da pena após o julgamento da segunda instância à execução trabalhista

A controvérsia originou-se da decisão proferida no Processo nº 080901-75.2013.5.17.009, pela juíza substituta da 9ª Vara do Trabalho de Vitória/ES, que, em despacho monocrático, conferiu caráter definitivo à execução de verbas trabalhista antes do trânsito em julgado. A magistrada aplicou a sua decisão por analogia ao entendimento firmado pelo STF no habeas corpus nº 126.292, no sentido da  possibilidade da execução de sentença penal condenatória por Tribunal de 2º grau, antes do trânsito em julgado.

Neste sentido, apresentou os seguintes fundamentos da sua decisão: aplicação por analogia à execução trabalhista da decisão do Supremo e princípio da duração razoável do processo.

 

2- Da insustentabilidade das teses que amparam a decisão

2.1- Impossibilidade de aplicação por analogia das regras de processo penal ao Direito do Trabalho

Os requisitos para aplicação por analogia em decisões judiciais são a omissão ou lacuna legislativa e a existência de semelhança entre as situações. Nenhum dos requisitos aplica-se ao caso em análise.

O Direito ensina que o juiz só poderá julgar por analogia quando a lei for omissa, conforme prevê expressamente o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942). Portanto, a questão não pode, em absoluto, estar prevista em lei, caso contrário a lei não é omissa.

A aplicação por analogia de normas e princípios do processo penal ao processo do trabalho contraria normas expressas do CPC e da CLT:

Art. 15 do CPC - Na ausência de normas que regulem processos trabalhistas o CPC poderá ser aplicado supletiva e subsidiariamente.

Art. 769 da CLT - Nos casos omissos, o direito processual do trabalho terá como fonte subsidiária o direito processual comum (CPC), exceto no que for incompatível com as normas da CLT.

Art. 889 da CLT - Aplica-se à execução trabalhista as regras do processo executivo fiscal (Lei 6.830/80), desde que não contrariem as prescrições da CLT, caso esta não resolva a questão, aplica-se o CPC por força dos arts. 769 da CLT e 15 do CPC.

 

O segundo requisito para aplicação por analogia seria a existência de semelhança entre a questão omissa e o caso previsto em lei. A analogia funda-se no princípio geral de que se deva dar tratamento igual a casos semelhantes; assim, a semelhança deve ser demonstrada sob o ponto de vista dos efeitos jurídicos, supondo-se que as coincidências sejam maiores e juridicamente mais significativas que as diferenças.

A semelhança utilizada pela decisão da juíza capixaba resume-se à "ausência de efeito suspensivo dos recursos aos Tribunais Superiores". A ausência de efeito suspensivo aos Tribunais Superiores é a regra em todos os ramos do direito, portanto, esta não é uma semelhança relevante para buscar a aplicação por analogia do processo penal, pois independe da natureza do direito discutido e dos seus efeitos jurídicos.

A ausência de efeito suspensivo dos recursos autoriza a execução provisória, mas em cada ramo do Direito há normas legais e princípios próprios que a regem, a demonstrar que a natureza e os efeitos dos direitos em questão demanda disciplina própria e distinta.

As diferenças entre o Direito Penal e o Trabalhista são significativas e não permitem que lhes sejam conferidos tratamento igual na matéria, como se percebe da decisão do Supremo que só se utiliza de fundamentos, leis e princípios vinculados ao Direito Penal, totalmente diferentes dos que regem o Direito do Trabalho, senão vejamos.

Tanto na ADC 43-MC (Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Edson Fachin, j. 5/10/2016), quanto no ARE 964.246, com Repercussão Geral (Rel. Min. Teori Zavascki, j. 10/11/2016), os fundamentos utilizados pelo STF para admitir a execução da pena antes do trânsito em julgado foram específicos do Direito Penal, inaplicáveis, portanto, ao Direito do Trabalho.

Nessas ocasiões, o Supremo decidiu que o princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade), extraído da norma do art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, não impede o início da execução da pena fixada na condenação, uma vez esgotados os recursos cabíveis nas instâncias ordinárias. Conferiu, assim, interpretação conforme à regra expressa do art. 283 do Código de Processo Penal, que proíbe a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, salvo a excepcional atribuição de efeito suspensivo do recurso cabível, sob os seguintes fundamentos:

a) quando a Constituição quis conferir imunidade à prisão ela a fez expressamente (art. 53, § 2º e art. 86, § 3º da CF);

b) a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado é contemplada em outras disposições do art. 5º. A única exigência é de que a decisão seja emitida por autoridade judiciária competente e esteja devidamente fundamentada, como se extrai dos incisos LIV e LXI do art. 5º da CF;

c) o alcance do princípio da presunção da inocência deve estar aliado à  busca de um necessário equilíbrio com a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade;

d) o princípio da presunção de inocência significa que não se exige que alguém prove que é inocente, porque a inocência se presume e tem como consequências a formulação de normas processuais que impõe a ampla defesa, o contraditório, o ônus da prova pela acusação, legitimidade e legalidade dos meios de prova, juiz natural, dentre outros e confere ao acusado os seguintes direitos: (i) não ser obrigado a produzir prova de sua inocência nem a submeter-se a procedimentos voltados a produzir prova contra si mesmo, até o trânsito em julgado da condenação; (ii) não ser obrigado a se recolher à prisão para interpor recursos; e (iii) direito à absolvição em caso de dúvida razoável quanto à verossimilhança da acusação formulada, não se podendo interpretar em desfavor do acusado o silêncio da defesa ou a ausência de prova de que o réu é inocente;

e) nas instâncias ordinárias se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a fixação da culpa do acusado, com considerável força, pois é natural que a presunção de inocência vá perdendo o fôlego no curso do processo. Cita diversos países que também acolhem essa regra;

f) não pode haver prisão antes de esgotados todos os recursos, com indisfarçáveis propósitos protelatórios, visando a configuração da pretensão punitiva - ao invés de constituírem um instrumento de garantia da presunção de não culpabilidade do apenado, acabam representando um mecanismo inibidor da efetividade da jurisdição penal e de impunidade. (Destaque-se que a execução após o transito em julgado na Justiça do Trabalho não configura qualquer risco de prescrição do débito trabalhista, como ocorre no Direito Penal);

g) esse posicionamento não retira a eficácia da previsão constitucional do inciso LVII do art. 5º da CF, que manterá sua incidência em relação aos demais efeitos da condenação criminal que deverão aguardar os julgamentos dos recursos especiais e extraordinários, com respectivo trânsito em julgado: efeitos extrapenais (indenização do dano), perda cargo ou função pública, perda da primariedade e possibilidade de reincidência e aumento do prazo prescricional no caso do cometimento de nova infração penal, dentre outros.

 

Percebe-se que o único efeito da pena que se pode entender assemelhado à execução trabalhista é a "condenação em indenização do dano", eis que possui natureza pecuniária, por conferir ao condenado penalmente uma obrigação de pagar. Neste ponto, para a obrigação de pagar, o Supremo mantém a exigência do trânsito em julgado.

Resta claro que todos os fundamentos da decisão do Supremo se referem ao Direito Penal, sem qualquer semelhança à hermenêutica ou aos princípios do Direito do Trabalho, impedindo a aplicação por analogia à execução trabalhista por absoluta falta de similitude das questões.

Por fim, a questão não é nova na jurisprudência do STF. Somente no período compreendido entre 2009 e 2016, ou seja, durante quase sete anos, prevaleceu a tese contrária, que exigia o trânsito em julgado. Durante os anos de 1988 até 2009 e desde 2016 até o momento atual, prevaleceu a possibilidade da prisão antes do trânsito em julgado e essa interpretação nunca foi aplicada por analogia à justiça laboral, pois não há semelhança possível a ensejar a interpretação feita pela juíza capixaba.

 

2.2- O princípio da duração razoável do processo não ampara a decisão - jurisprudência do TST

A decisão da juíza capixaba viola o art. 899, caput, da CLT, pelo qual "a execução provisória é permitida até a penhora", ou seja, não se permite atos de expropriação nessa espécie de execução antes daquela fase.

Art. 899 - Os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo, salvo as exceções previstas neste Título, permitida a execução provisória até a penhora.

 

Esta posição é corroborada pela jurisprudência do TST, que vem reformando as decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho que, ante a aplicação subsidiária de regras do CPC e do princípio da duração razoável do processo, autorizam de oficio, ou a requerimento da parte, o levantamento de valores antes do trânsito em julgado.

O TST entende que aplicação das regras do CPC que permitem a liberação de verbas na execução provisória mediante caução (art. 475-O do antigo CPC – atual art. 520, inciso IV, do CPC vigente) são incompatíveis com os arts. 899, caput, e 769 da CLT. A ver:

3. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. LIBERAÇÃO DE VALORES. ART. 475-O DO CPC/73. PROCESSO DO TRABALHO. INCOMPATIBILIDADE.
A aplicação do art. 475-O do CPC/73 no Processo do Trabalho encontra óbice insuperável nas normas específicas que rege a execução trabalhista. Tendo o Tribunal Regional autorizado o levantamento de valores depositados antes do trânsito em julgado da decisão final do processo, à luz da legislação processual comum, e, havendo norma processual expressa que regula, de maneira específica e distinta, a execução provisória no processo trabalhista (CLT, art. 899, caput e § 1º), não há como manter sua aplicação. Recurso de revista conhecido e provido. (Processo: RR - 89900-40.2009.5.03.0011, j. 25/4/2018, Rel. Min. Breno Medeiros, 5ª Turma, DEJT 4/5/2018)

RECURSO DE REVISTA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. LIBERAÇÃO DOS VALORES DEPOSITADOS EM JUÍZO. ART. 475-O DO CPC/73. INAPLICABILIDADE NO DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO.
Consoante a jurisprudência predominante desta Corte Superior, a liberação dos valores depositados em juízo, prevista no art. 475-O do CPC de 1973, não é aplicável ao processo do trabalho, haja vista a incompatibilidade com as disposições dos arts. 769 e 899, caput, § 1º, da CLT, as quais conferem disposição específica acerca da limitação da execução provisória até a penhora. Recurso de revista conhecido e provido, no tópico. (Processo: RR - 1348-93.2010.5.03.0034, j. 25/4/2018, Rel. Min. Walmir Oliveira da Costa, 1ª Turma, DEJT 27/4/2018)

2. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. LIBERAÇÃO DE VALORES. ART. 475-O DO CPC/73. PROCESSO DO TRABALHO. INCOMPATIBILIDADE.
A aplicação do artigo 475-O do CPC/73 no Processo do Trabalho encontra óbice insuperável nas normas específicas que rege a execução trabalhista. Tendo o Tribunal Regional autorizado o levantamento de valores depositados antes do trânsito em julgado da decisão final do processo, à luz da legislação processual comum, e, havendo norma processual expressa que regula, de maneira específica e distinta, a execução provisória no processo trabalhista (CLT, art. 899, caput e § 1º), constata-se contrariedade ao princípio do devido processo legal e violação direta do art. 5.º, LIV, da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e provido. 3. HIPOTECA JUDICIÁRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA EM PECÚNIA. ART. 466 DO CPC/73 (ART. 495 DO CPC/2015). Nos termos do art. 466 do CPC de 1973 (atual art. 495 do CPC de 2015), a condenação do reclamado ao pagamento de prestação pecuniária acarreta a formação de título constitutivo de hipoteca judiciária. Trata-se, portanto, de efeito secundário ou anexo da sentença, plenamente compatível com o Processo do Trabalho, destinado a dar efetividade à execução (CLT, art. 769). Recurso de revista não conhecido. (Processo: RR - 1297-64.2010.5.03.0137, j. 4/4/2018, Rel. Min. Breno Medeiros, 5ª Turma, DEJT 13/4/2018)

 

O TST apenas entende compatível com o processo trabalhista determinação ex officio da hipoteca judiciária prevista, por aplicação subsidiária do art. 495 do CPC vigente c/c o art. 769 da CLT. Entretanto a execução ou liberação da hipoteca somente se dá com o trânsito em julgado:

HIPOTECA JUDICIÁRIA. APLICAÇÃO AO PROCESSO TRABALHISTA. DETERMINAÇÃO EX OFFICIO. POSSIBILIDADE.
A jurisprudência desta Corte adota o entendimento de que a hipoteca judiciária de que trata o artigo 466 do CPC/73 é compatível com o processo do trabalho, não havendo óbice para sua declaração. Esta Corte também firmou a tese da possibilidade da declaração de ofício da hipoteca judiciária. (Processo: RR - 51600-76.2011.5.17.0131, j. 10/4/2018, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, 2ª Turma, DEJT 13/4/2018)

 

O que a doutrina e jurisprudência laboral permitem, face o princípio da duração razoável do processo, é que a expressão “até a penhora”, inscrita no art. 899 da CLT, não obstaculize a análise judicial das controvérsias relativas à penhora (embargos e recursos), até que venha a decisão definitiva quanto ao mérito, que possibilitará o levantamento da penhora pela parte vencedora, conforme entendimento abaixo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. CERCEAMENTO DE DEFESA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. AGRAVO DE PETIÇÃO. CABIMENTO.
Demonstrado no agravo de instrumento que o recurso de revista preenchia os requisitos do art. 896 da CLT, ante a constatação de violação, em tese, do art. 5º, LV, da CF. Agravo de instrumento conhecido e provido. RECURSO DE REVISTA. CERCEAMENTO DE DEFESA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. AGRAVO DE PETIÇÃO. CABIMENTO. Viola o art. 5º, LV, da CF, acórdão regional que não conhece de agravo de petição interposto em execução provisória, por considerá-lo incabível, haja vista a ausência de impedimento jurídico ao manejo de recursos e atos processuais afetos a incidentes da penhora, em sede de execução provisória, entre os quais incluídos os embargos à execução opostos contra a sentença de liquidação, impugnação à liquidação e, inclusive, agravo de petição. Recurso de revista conhecido e provido. (TST – RR: 29492920105020078 e 2949-29.2010.5.02.0078, j. 17/9/2013, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, 3ª Turma, DEJT 20/9/2013)

 

3- Da medida judicial cabível

Cabe mandado de segurança contra a decisão que determina a penhora em dinheiro em execução provisória, conforme disposição expressa da Súmula 417 do TST, verbis:

Súmula nº 417 do TST

MANDADO DE SEGURANÇA. PENHORA EM DINHEIRO (conversão das Orientações Jurisprudenciais nº 60, 61 e 62 da SBDI-2) – Res. 137/2005, DJ 22, 23 e 24.08.2005

[…]

III – Em se tratando de execução provisória, fere direito líquido e certo do impetrante a determinação de penhora em dinheiro, quando nomeados outros bens à penhora, pois o executado tem direito a que a execução se processe da forma que lhe seja menos gravosa, nos termos do art. 620 do CPC. (ex-OJ nº 62 da SBDI-2  – inserida em 20.09.2000)

 

 

Conclusão

Não se sustenta juridicamente a decisão monocrática da juíza substituta da 9ª Vara do Trabalho de Vitória/ES, que conferiu caráter definitivo à execução de verbas trabalhista antes do trânsito em julgado, por analogia ao entendimento firmado pelo STF no Habeas Corpus 126.292, no sentido da possibilidade da execução de sentença penal condenatória por Tribunal de Segundo Grau antes do trânsito em julgado.

Parece tratar-se de entendimento isolado, nunca antes utilizado pela Justiça do Trabalho, mesmo durante os anos em que vigeu a  interpretação atual do Supremo.

Ademais o TST possui entendimento contrário à decisão capixaba, ante a regra expressa do art. 899 da CLT, que só permite a execução provisória até a penhora e sumulou a orientação de que decisões como esta são passíveis de mandado de segurança por violação do direito líquido e certo do reclamado (Súmula 417 do TST).

 

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Christina Aires Correa Lima é advogada da CNI

 

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