Marco regulatório do metaverso

Por Christina Aires Correa Lima de Siqueira Dias

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EDIÇÃO 23 - JULHO 2023
imagem da palavra metaverso representando o marco regulatório do metaverso

 

1. Proposta de marco regulatório do metaverso. 2. Não há inconstitucionalidades na proposta, que busca responder algumas das indagações sobre a regulamentação do metaverso que, apesar de importantes, ainda são incipientes, tendo em vista toda a gama de relações jurídicas que podem advir dessa tecnologia e demandam ainda muita reflexão e debate. 3. Sugestão para que a CNI acompanhe de perto a proposta, juntamente com os setores, que podem ter o crescimento impulsionado com essa nova tecnologia, para que a regulamentação traga segurança jurídica, proteção aos usuários e fomente o desenvolvimento dessa tecnologia no Brasil, de forma a incentivar o setor produtivo nacional. 4. Como o metaverso não encontra limite nas fronteiras dos países, o ideal é que a regulamentação siga um padrão mundial.

I- Contexto

1- Trata de análise jurídica do Projeto de Lei (PL) 2175/2023, que dispõe sobre o marco regulatório do metaverso e estabelece princípios, diretrizes e normas para o uso e a realização de negócios jurídicos nesse ambiente virtual, assim resumido:

 

Institui o Marco Regulatório do Metaverso, com o objetivo de estabelecer diretrizes e princípios para a regulação, organização e funcionamento dos ambientes virtuais interconectados.

- Define o metaverso como o conjunto de ambientes virtuais interconectados, acessados por meio de dispositivos eletrônicos, que permitem a interação entre usuários representados por avatares e a realização de negócios jurídicos.

- Os negócios jurídicos realizados no Metaverso, envolvendo usuários domiciliados no território nacional, ficam sujeitos à jurisdição brasileira.

- Nos casos em que houver conflito de leis, será aplicada a legislação mais favorável ao usuário, respeitando os princípios da ordem pública e da soberania nacional.

- As partes envolvidas em negócios jurídicos realizados no metaverso podem estabelecer, por meio de cláusula contratual, a jurisdição e a legislação aplicável.

II- Análise

II.I- ASPECTOS FORMAIS

2- Não há vício formal na proposta, eis que compete à União legislar sobre informática (22, IV), direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho (22, I), sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais (22, VI) dentre outras matérias, que podem vir a ser incluídas na regulamentação do metaverso. Ademais, não há na proposta nenhuma das matérias que exigem iniciativa privativa do Chefe do Executivo (art. 61, § 1º).

II.II- ASPECTOS MATERIAIS

3- Como colocado na justificativa, a proposta visa regulamentar o metaverso, para que se promova transparência, segurança, e inovação nesse ambiente, verbis:

“Trata-se de Projeto de Lei com o objetivo de instituir o Marco Regulatório do Metaverso, com o objetivo de estabelecer diretrizes e princípios para a regulação, organização e funcionamento dos ambientes virtuais interconectados, assegurando o livre acesso, a proteção dos direitos dos usuários, o desenvolvimento tecnológico e a proteção dos direitos autorais, de propriedade intelectual e do comércio eletrônico.

O metaverso, uma convergência entre a realidade física e a realidade virtual, tem se tornado cada vez mais presente em nossas vidas. Ele abrange ambientes virtuais, tecnologias de realidade virtual e aumentada, e plataformas digitais que permitem a interação e a cooperação entre usuários em tempo real. Com o rápido avanço dessa tecnologia, é fundamental estabelecer um marco regulatório que promova a transparência, a segurança e a inovação em todo o ecossistema do metaverso.

O objetivo deste projeto de lei é criar um marco regulatório para o metaverso, abordando questões como propriedade intelectual, privacidade, proteção de dados, acesso, segurança, responsabilidade e jurisdição nos negócios jurídicos.

Os negócios jurídicos realizados no metaverso, incluindo, mas não se limitando a, contratos, transações comerciais e disputas entre usuários, devem ser regidos pelas leis da jurisdição em que as partes envolvidas têm sua residência habitual, a menos que as partes acordem expressamente em contrário.

No caso de negócios jurídicos envolvendo partes de diferentes jurisdições, a lei aplicável será aquela escolhida pelas partes envolvidas. Caso não haja acordo expresso, a lei aplicável será a do local de residência habitual do autor da ação.

As plataformas e prestadores de serviços que operam no metaverso devem estabelecer mecanismos eficientes para a resolução de disputas, incluindo a mediação e a arbitragem, garantindo a acessibilidade e a eficácia na resolução de conflitos entre as partes envolvidas.

A jurisdição competente para dirimir eventuais litígios decorrentes de negócios jurídicos realizados no metaverso deve ser a do foro do domicílio do réu, salvo acordo expresso em contrário entre as partes.

Os órgãos reguladores e as autoridades competentes devem cooperar internacionalmente para garantir a aplicação efetiva das leis e regulamentações pertinentes aos negócios jurídicos realizados no metaverso, promovendo o intercâmbio de informações e a cooperação jurídica internacional.

O presente projeto de lei busca estabelecer uma base sólida para a regulação do metaverso, garantindo que os direitos e interesses de todas as partes envolvidas sejam protegidos e promovendo um ambiente seguro e inovador para o desenvolvimento desta tecnologia emergente.”

4- Metaverso é um termo usado para descrever um ecossistema que combina realidade virtual e realidade mista para oferecer interações em tempo real entre pessoas. Esse universo compreende conceitos como tecnologia blockchain, Realidade Virtual, Realidade Aumentada e Inteligência Artificial, capazes de possibilitar aos usuários a se envolverem em experiências imersivas.

5- O metaverso, apesar de já existir, ainda está em um estágio primário de desenvolvimento, como um mundo novo de realidade virtual aumentada, interoperável e sem as fronteiras definidas dos países, onde as pessoas por meio de avatares podem interagir entre si, como no mundo real. Portanto, nele poderão ser criados direitos e obrigações, com relações comerciais, trabalhistas, consumeristas, etc., o que traz consigo inúmeros questionamentos, em especial como será a regulamentação das relações jurídicas firmadas nesse mundo virtual.

6- Mesmo que esse novo universo ainda não seja uma realidade cotidiana, é certo que já há diversos aplicativos que funcionam como porta de entrada para esse cibermundo, tais como: jogos (Sim's, 2000, Roblox 2006 e Minecraft 2011) e plataformas de ambientes interativos para relações sociais (Active Worlds 1995, Second Life 2003, Decentraland 2017 e Mozila Hubs 2018).

7- Ademais, o investimento maciço de empresas como a Meta (Facebook), Sony, Microsoft, Nvidia e Qualcomm, demonstram que o metaverso se tornará uma realidade mundial. Tanto que um grupo de empresas constituiu o Metaverse Standards Forum, formado para disseminar a tecnologia do metaverso de maneira aberta, padronizada e comunicável, justamente pensando no surgimento de meios para que as diversas plataformas se interliguem.

8- Nesse cenário, as interações comerciais e humanas no metaverso trazem uma série de desafios legais para a sua regulamentação, a começar por saber se o avatar de uma pessoa pode ser considerado um sujeito de direito (como a pessoa natural que ele representa). O avatar, no metaverso, por exemplo, pode contrair obrigações, como casamentos, contratos, direitos de imagem e intelectuais e, caso positivo, estes terão validade no mundo real?

9- Poderia o avatar cometer crimes, inclusive contra a honra e a imagem, que são direitos personalíssimos? E crime de racismo contra outros avatares? Nesse caso, a pena poderia ser aplicada no mundo real? Qual seria o órgão competente para julgar tais questões? A plataforma deverá mediar as interações entre os avatares? São questões que demandam uma reflexão profunda da humanidade, de como se dará a sua expansão para um universo virtual, como um novo modo de vida e de se relacionar uns com os outros, que não no mundo real.

10- Além disso, o volume de dados pessoais que podem ser coletados no metaverso seria infinitamente maior do que os dos meios tradicionais de interação na internet, podendo inclusive coletar-se dados de linguagem corporal e fisiológicas dos avatares. Esses poderão ser considerados como dados pessoais? Em princípio, entendo que sim porque levam à identificação do indivíduo, representado pelo avatar.

11- Como devem ser reguladas as relações consumeristas pelas compras realizadas no metaverso pelo e para o avatar?

12- O direito autoral também terá um grande desafio, considerando os NFTs, ou “token não fungíveis”, que podem representar algo único, como por exemplo um avatar, ou podem conter obras digitas, fotos digitais, conteúdos exclusivos, e ter valores expressivos. Em 2022, os NFTs movimentaram mais de US$ 24,9 bilhões. A estes pode ser aplicada a lei de direitos autorais, ou de propriedade intelectual que preserva os criadores e suas criações? A lei atual é suficiente para a proteção nesse novo universo?

13- O comércio de bens para os avatares, dentro do metaverso, poderia ensejar a cobrança de impostos ou outras regulações presentes no mundo real?

14- Tal realidade não está tão distante, se lembrarmos que já foram realizados shows em plataformas de metaverso e a Disney se prepara para oferecer essa tecnologia, como destaca um trecho da reportagem da BBC, abaixo reproduzida:

“A cantora Ariana Grande, o DJ Marshmello e o rapper Travis Scott já se apresentaram no famoso videogame Fortnite, da Epic Games, em uma demonstração de como poderia ser o futuro dos shows musicais no metaverso.

Até 12,3 milhões de jogadores da plataforma chegaram a se reunir em tempo real em abril do ano passado para presenciar o lançamento da música The Scotts, composta pelo superastro do rap Travis Scott e seu colega Kid Cudi.

E até o ratinho Mickey parece estar pronto para interagir no metaverso. O diretor executivo da Disney Bob Chapek afirmou que o conglomerado está se preparando para dar um salto tecnológico rumo ao mundo da realidade virtual nos seus parques temáticos.

Mas a experiência não ficaria limitada aos parques. ‘Estender a magia dos parques da Disney para os ambientes domésticos é uma possibilidade real’, segundo ele.”

15- A proposta já vislumbra esse novo universo e busca conferir um mínimo de regras, para conferir segurança jurídica nas interações virtuais.

16- A proposta trata de temas importantes, como a estipulação de princípios (art. 3º), a sujeição à legislação e jurisdição brasileira dos negócios realizados no metaverso, envolvendo usuários domiciliados no Brasil, bem como da legislação mais favorável ao usuário no caso de conflito de leis (art. 4º), proteção de dados pessoais, suporte e colaboração com as autoridades pela plataforma (art. 5º).

17- Não obstante, ainda há muitos temas não tratados e que merecem maior reflexão, motivo pelo qual a proposta demanda muita reflexão e debate e deve ser acompanhada de perto pela CNI e os setores, que podem ter o crescimento impulsionado com essa nova tecnologia, para que a regulamentação traga segurança jurídica, proteção aos usuários e fomente o desenvolvimento dessa tecnologia no Brasil, de forma a incentivar o setor produtivo nacional. Como o metaverso não encontra limite nas fronteiras dos países, o ideal é que a regulamentação siga um padrão mundial.

 

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Christina Aires Correa Lima de Siqueira Dias é advogada da CNI

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