Reforma do setor elétrico: análise jurídica do substitutivo ao PLS 232

por Alexandre Vitorino

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EDIÇÃO 9 - DEZEMBRO 2019
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I – OBJETO

1Trata-se de análise jurídica do substitutivo apresentado pelo senador Marcos Rogério (DEM/RO) na Comissão de Serviços e Infraestrutura ao Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 232/2016, de autoria do senador Cássio Cunha Lima (PSDB/PB), dispondo sobre o modelo comercial do setor elétrico, a portabilidade da conta de luz e as concessões de geração de energia elétrica.

2Na justificação, destaca-se que, no Brasil, somente o consumidor que atenda à exigência de carga de 3.000 kW poderá escolher livremente o fornecedor com quem contratará a compra de energia elétrica (art. 15, § 3º, da Lei nº 9.074/1985).

3Pondera-se, ainda, que, há um segundo grupo de consumidores – denominados especiais –, que detém alguma liberdade para contratar a compra de energia elétrica. São aqueles com carga entre 500 kW e 3.000 kW, que podem firmar contratos com fornecedores que se qualifiquem como empreendimentos hidrelétricos de potência inferior a 50.000 kW e aqueles com fontes solar, eólica e de biomassa cuja potência injetada nos sistemas de transmissão ou distribuição seja menor ou igual a 50.000 kW.

4Aduz-se, ainda no encaminhamento da proposta, que a um terceiro grupo de consumidores – representado pela esmagadora maioria das residências brasileiras – não é franqueada, porém, qualquer liberdade para selecionar o fornecedor junto ao qual fará a sua compra de energia elétrica. Estes estão, assim, adstritos ao mercado regulado de energia elétrica.

5Como os preços do mercado livre são inferiores ao do mercado cativo, articula o autor da proposta que o marco legal regulatório do setor elétrico deve ser modificado, para que, de um lado, se promova a competição entre os fornecedores de energia e, de outro, o consumidor de menor carga possa ter acesso à energia elétrica a preços mais módicos.

 

 

II – ANÁLISE

6De acordo com o art. 22, IV, da Constituição Federal, compete à União, privativamente, legislar sobre energia.

7Além disso, a matéria em questão não está inserida no campo taxativo daquelas cuja iniciativa é reservada à Presidência da República (art. 61, § 1º, da Constituição Federal).

8Sendo assim, a proposição ora sob exame não ostenta qualquer mácula aparente de inconstitucionalidade formal, por ter observado o processo legislativo regrado pela Constituição.

9No mérito, há três pontos de maior relevância para o setor industrial no projeto de lei.

10 O primeiro diz respeito à ampliação do acesso ao mercado livre de energia a consumidores de menor carga, que a proposta gradualmente pretende implementar. A Diretoria Jurídica da CNI tem se pronunciado pela inexistência de óbices jurídicos que venham a democratizar o acesso dos consumidores comuns ao ambiente de livre negociação de energia. Trata-se de medida que, concretamente, promove a livre iniciativa, a economia de mercado e o incremento da produção ao consumidor, em consonância com as diretrizes da Constituição Econômica.

11Vide, a propósito, a ementa da manifestação dada pela Diretoria Jurídica da CNI em 2015, que analisou o Projeto de Lei nº 2.059/15, que tratava da ampliação do mercado livre de energia elétrica:

“Projeto de Lei para dispor sobre a ampliação do Mercado Livre de Energia Elétrica - Proposta sem óbices jurídicos formais - Aparenta conferir maior isonomia aos consumidores - Alinhada com os princípios constitucionais da ordem econômica e com as diretrizes do regime de concessão da prestação de serviços públicos - Pode merecer apoio da CNI, mas deve-se ouvir a área técnica quanto ao mérito.”

12Apesar de tal entendimento ser o atual, há que se ponderar, porém, que o acesso de consumidores ao mercado livre (outrora submetidos ao mercado regulado) somente será benéfico, globalmente, se, como acentua a justificação da proposição, as distribuidoras “forem blindadas quanto a eventual excesso de contratação decorrente da migração para o mercado livre e a expansão da oferta de energia elétrica não for colocada em risco”.

13As consequências na base representada poderão, pois, ser sensíveis, e recomendam análise técnica. Daí a razão pela qual, nesse ponto específico, um pronunciamento conclusivo sobre a conveniência da proposição ora examinada depende de pronunciamento da área técnica competente sobre o impacto sistêmico da nova fórmula adotada pelo legislador.

14O segundo ponto relevante para a indústria relaciona-se à possibilidade, aventada na proposição, de o consumidor de energia vender, a preços livremente negociados, eventuais excedentes, na forma de futura regulamentação a ser adotada pela Agência Nacional da Energia Elétrica (Aneel). Cuida-se de medida que se presta a estimular investimentos em geração de pequeno porte que se vale de fonte renovável de energia elétrica. Iniciativas legislativas de tal jaez também vêm sendo apoiadas pela indústria, consoante se depreende, entre outros, dos seguintes pareceres jurídicos:

I - De acordo com o art. 22, IV, da Constituição Federal, compete à União, privativamente, legislar sobre energia. Além disso, a matéria em questão não está inserida no campo daquelas cuja iniciativa é reservada à Presidência da República (art. 61, § 1º, da Constituição Federal). Sendo assim, a proposição ora sob exame não ostenta qualquer mácula de inconstitucionalidade formal, por ter observado o processo legislativo regrado pela Carta de 1988.

II - Esta Diretoria Jurídica já se pronunciou sobre a conveniência de incentivar a produção e utilização de energia solar por meio da criação de sanções premiais, por se tratar de energia limpa, renovável e passível de ser produzida mediante investimentos de baixo custo e com mínimo impacto ambiental.

III - No mérito, o presente projeto de lei prevê que a União, com o intuito de estimular investimentos voltados ao aproveitamento da energia solar para geração de energia elétrica, ou para aquecimento solar de água, poderá criar linhas de crédito especiais, empregando recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do Orçamento Geral da União, da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e da Reserva Global de Reversão (RGR), bem como instituir incentivos relativos ao Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) incidentes na comercialização de baterias, conversores, painéis fotovoltaicos e outros equipamentos do sistema fotovoltaico.

IV - Parecer pelo apoio à proposição.

(parecer da Diretoria Jurídica da CNI ao Projeto de Lei nº 2.952/2011, que pretende instituir o Programa de Incentivo ao Aproveitamento da Energia Solar - Prosolar)

I - Compete à União legislar, privativamente, sobre energia elétrica, nos termos do art. 22 da Constituição Federal. A matéria legislada é de iniciativa comum, não havendo reserva de iniciativa presidencial (art. 61, § 1º, da CF, com interpretação restritiva do rol taxativo). O PL atende, assim, ao processo legislativo disciplinado constitucionalmente e não ostenta mácula de inconstitucionalidade formal.

II - No mérito, a proposta é conveniente para a indústria, pois pode contribuir para aumentar a oferta de energia no mercado e baratear os seus custos, além de democratizar o direito de investir em geração. A possibilidade de microgeração ou minigeração de energia por consumidor para uso próprio, com eventual fornecimento de excedente à concessionária ou permissionária de serviço e criação de sanções premiais (descontos ou créditos em faturas seguintes), já foi objeto de parecer desta Diretoria Jurídica, que concluiu, na ocasião, pelo caráter benfazejo da medida, no contexto da energia solar fotovoltaica.

III - Parecer no sentido do endosso à proposição.

(parecer da Diretoria Jurídica da CNI ao Projeto de Lei do Senado nº 393/2012, que pretende estabelece condições para a implantação de microgeração e minigeração distribuídas no sistema de distribuição de energia elétrica)

15Finalmente, o projeto ora examinado, a fim de privilegiar a indústria nacional, propõe que “as concessões de geração de energia hidrelétrica destinadas à autoprodução e à produção independente com consumo próprio possam ser prorrogadas pelo prazo de até 30 (trinta anos)”, sem que haja nova licitação para tanto.

16Embora se trate de dispositivo cuja constitucionalidade possa ser questionada à luz do disposto no art. 175 da Constituição, no caso, por se tratar de particular concessão com finalidade de atender à demanda de autoprodução e de produção independente, tem-se que a defesa de sua constitucionalidade se apresenta viável. Em tal contexto, não aparenta haver óbices jurídicos intransponíveis à sua aprovação.

17Com relação ao mérito das emendas apresentadas no substitutivo, o relatório, muito bem fundamentado, dá conta de que não desnaturam as finalidades centrais do PL, e nelas não se detecta qualquer inconstitucionalidade formal ou material. Confira-se, a propósito, o rol de alterações propostas:

a) redução gradual dos requisitos de carga e de tensão para que o consumidor possa escolher o seu fornecedor de energia elétrica; esse movimento permite uma transição suave, e cria condições para que os diversos agentes de setor elétrico se adequem paulatinamente ao novo cenário e aos novos parâmetros decisórios;

b) implantação da abertura do mercado livre para a baixa tensão somente após o Poder Executivo adotar algumas ações estruturantes; a opção dos consumidores de pequeno porte pelo mercado livre exige a redução de custos de equipamentos e a realização de uma campanha de comunicação a fim de esclarecer os benefícios e os riscos associados à decisão; além disso, é preciso deixar claro para o consumidor que, mesmo com a opção pelo mercado livre, ele provavelmente permanecerá conectado à rede das distribuidoras, ou seja, o vínculo com essas empresas não será totalmente interrompido;

c) separação entre as atividades de distribuição de energia elétrica e de comercialização regulada de energia elétrica, a fim de preservar o equilíbrio econômico-financeiro das empresas de distribuição;

d) criação da figura do agente varejista para representar consumidores perante a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), algo coerente com as finalidades e características da CCEE e com o fato de que os agentes que atuam na comercialização de energia elétrica no âmbito do mercado livre devem assumir mais responsabilidades;

e) rateio de eventual prejuízo das distribuidoras de energia elétrica com a migração de clientes para o mercado livre com todos os consumidores (livres e regulados), a fim de evitar que apenas os consumidores regulados assumam o ônus de contratos de longo prazo e caros firmados pelas distribuidoras com geradores, como usinas termelétricas e usinas cotistas (Itaipu, Angra 1 e Angra 2, por exemplo);

f) ampliação dos mecanismos de gestão das distribuidoras para a redução do excesso de contratação de energia elétrica, o que permitirá, inclusive, diminuir eventual prejuízo com a migração de consumidores para o mercado livre;

g) definição em lei do conceito de autoprodutor, com a devida explicitação da regra de pagamento de encargos por esse agente; essa medida reduzirá incertezas que hoje estão presentes nessa atividade;

h) direcionamento, nos casos de outorga de novos contratos de concessão para usinas existentes, da maior parte da chamada renda hidráulica para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), com vistas a reduzir o ônus dos consumidores livres e regulados no pagamento de subsídios, o que está alinhado com recomendações do Tribunal de Contas da União (TCU); além disso, essa é uma ação em prol não somente da redução da venda compulsória de energia elétrica, em regime de cotas, para o mercado regulado, mas também da necessária realocação do risco hidrológico no gerador;

i) revisão da base de cálculo das multas por parte da Aneel, o que é coerente com o fato de que alguns agentes do setor elétrico funcionam apenas como arrecadadores de recursos;

j) aperfeiçoamento nas diretrizes a serem observadas pela Aneel na definição da Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia Elétrica (Tust) e da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição de Energia Elétrica (Tusd), com o objetivo de ampliar o uso do sinal locacional e dos atributos das fontes de geração, conferindo maior racionalidade econômica no pagamento dessas tarifas e na concorrência entre fontes de geração. Também contribui para valorar os benefícios das fontes alternativas de geração;

k) explicitação em lei da possibilidade de cobrança de tarifas horárias e do pré-pagamento para consumidores regulados;

l) ampliação da transparência nas tarifas de energia elétrica, por meio da obrigação de os consumidores regulados serem informados do valor referente à compra de energia elétrica, o que permitirá que avaliem melhor a opção de migrar para o mercado livre, e da obrigação de as reuniões do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) serem abertas ao público;

m) vedação de cobrança em R$/MWh pelo serviço de distribuição e de transmissão, o que reduzirá os efeitos distributivos adversos que a autoprodução por consumidores de baixa tensão tem provocado, e contribuirá para a separação entre os negócios de distribuição de energia elétrica e de comercialização regulada de energia elétrica, algo essencial para expansão do mercado livre;

n) substituição dos descontos na Tust e na Tusd para a energia comercializada por fontes alternativas, que têm provocado distorções no mercado de energia elétrica e que possuem perspectiva de trajetória crescente na ordem de bilhões de reais, pela valoração dos benefícios ambientais segundo um instrumento de mercado a ser elaborado pelo Poder Executivo;

o) reconhecimento de que vários estudos a serem executados ou contratados pelo Poder Executivo para a expansão sustentável do mercado livre fazem parte das ações de eficiência energética e de pesquisa e desenvolvimento, as quais recebem obrigatoriamente recursos das empresas do setor elétrico, nos termos da Lei nº 9.991, de 24 de julho de 2001;

p) previsão de que as quotas de CDE pagas pelas usinas hidrelétricas existentes que receberem novos contratos de concessão serão uma das fontes de receita da CDE, tal como as quotas pagas pelos consumidores de energia elétrica – esse ajuste legislativo decorre da proposta de que os novos contratos de concessão de geração destinem parte da renda hidráulica para a CDE;

q) permissão para exigência de contrapartidas e de critérios ambientais, sociais e econômicos dos beneficiários de subsídios custeados pela CDE, algo necessário para reduzir o artificialismo na decisão de migrar para o mercado livre ou para a autoprodução e para focalizar os benefícios nos consumidores hipossuficientes;

r) possibilidade de contratar os chamados serviços ancilares (tais como o controle de frequência e a reserva de potência) por mecanismo concorrencial, o que contribui para aprimorar a precificação dessas atividades;

s) obrigação de preços horários no mercado de curto prazo e do despacho segundo a lógica da oferta de preço e quantidade, o que permite acoplar a operação e a formação de preço – cabe ressaltar que a realização e a divulgação de estudos prévios e um período de testes são condições para a implantação desse tipo de despacho;

t) aperfeiçoamento nas regras de garantia financeira aplicadas ao mercado de curto prazo, com vistas a reduzir riscos financeiros sistêmicos ou de contágio entre os agentes;

u) obrigação de o Poder Executivo aprimorar o arranjo do mercado de energia elétrica, de forma a fomentar o desenvolvimento de bolsas de valores nacionais para comercialização de energia elétrica;

v) aperfeiçoamento nas regras para contratação regulada por disponibilidade e por quantidade, a fim de reduzir o risco de distorção no uso dessas modalidades;

w) criação de um mecanismo de descontratação voluntária e concorrencial de energia elétrica destinada ao mercado regulado, o que possibilitará a substituição de contratos de energia elétrica para atender o mercado regulado, firmados pelas distribuidoras com usinas caras e poluentes, por outras mais baratas e ambientalmente mais limpas;

x) criação da contratação de lastro (contribuição para o provimento de confiabilidade e adequabilidade sistêmica de cada usina), o que permitirá que a expansão da oferta de energia elétrica seja rateada de forma isonômica entre os mercados livre e regulado e o produto energia elétrica (que é diferente do produto lastro) seja negociado em separado e de forma mais eficiente – atualmente, lastro e energia são comercializados em conjunto, o que provoca distorções econômicas e distributivas;

y) exigência de que a contratação de lastro observe os atributos das fontes de geração, algo que contribuirá positivamente para a inserção, de forma sustentável e com justiça distributiva, das fontes alternativas na matriz elétrica brasileira, afastando eventuais questionamentos e críticas de que desenvolvimento dessas fontes de geração, que é necessário e importante para cumprir os compromissos de redução nas emissões de gases de efeito estufa, esteja provocando distúrbios econômicos e operacionais no setor elétrico e transferindo renda de pobres para ricos;

z) vedação da contratação de energia de reserva, depois de implantada a contratação de lastro, uma vez que seria incoerente, ineficiente e inadequada a manutenção desse mecanismo;

z’) fim do regime de cotas (a venda compulsória de energia elétrica para o mercado regulado) para as usinas hidrelétricas existentes, o que é coerente com a expansão do mercado livre e com o reconhecimento de que o consumidor não tem instrumentos para gerir o risco hidrológico; e

z’’) vedação para a repactuação do risco hidrológico, nos termos da Lei nº 13.203, de 8 de dezembro de 2015, o que também é coerente com o reconhecimento de que o consumidor não possui instrumentos para gerir esse risco. Tal como explicitado no parecer aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado (CCJ), entendo que esse conjunto de medidas está alinhado com os seguintes princípios de atuação do Estado, esculpidos em nossa Constituição: construção de uma sociedade livre, justa e solidária; redução das desigualdades econômicas, sociais e regionais; promoção da livre concorrência; defesa do consumidor e do meio ambiente. Considero, ainda, a exemplo do parecer aprovado na CCJ, que a Emenda nº 1 (substitutivo da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado - CAE) não apresenta qualquer vício de inconstitucionalidade.

III – CONCLUSÃO

18Diante do exposto, o parecer é no sentido da inexistência de óbices jurídicos à aprovação da proposição, seja na redação original, seja na do substitutivo. No tocante à conveniência da proposição, um pronunciamento conclusivo depende de apreciação da área técnica da CNI.

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Alexandre Vitorino é advogado da CNI

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