Fornecimento de alimentação ou auxílio-alimentação por empresas com 100 ou mais empregados

Por Eduardo Albuquerque Sant’Anna

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EDIÇÃO 20 - Dezembro 2022
imagem de um pacote de comida representando fornecimento de alimentação por empresas com mais de 100 funcionários

I- Objeto

 

1- Trata-se de análise jurídica do Projeto de Lei (PL) 2.548/22, de autoria parlamentar, que pretende tornar obrigatório o fornecimento de alimentação no local de trabalho ou de auxílio-alimentação por empresas com 100 ou mais empregados.

1.1- Afirma o parlamentar que muito embora o auxílio-alimentação seja um excelente mecanismo de “motivação e de remuneração” utilizado pelas empresas “conscientes de sua função social”, algumas vezes o empregado “é constrangido a trazer a própria marmita de casa”, imponto que suas mães ou esposas acordem cedo para preparar as refeições. Situação que se agrava com a crescente informalidade no mercado de trabalho.

1.2- O PL acrescenta o seguinte dispositivo à CLT:

Art. 457-A. Os estabelecimentos ou empresas com 100 (cem) ou mais empregados deverão fornecer alimentação, aos seus empregados, no local de trabalho, ou o auxílio-alimentação, previsto no § 2º do art. 457 desta Consolidação.

§ 1º Em caso de fornecimento de alimentação, esta deverá ser suficiente e diversificada, devidamente aprovada por nutricionista qualificado.

§ 2º O valor do auxílio-alimentação não será inferior a 30% (trinta por cento) do salário-mínimo.

§ 3º As pessoas jurídicas que realizarem despesas em programas de alimentação do trabalhador previamente aprovados pelo Ministério do Trabalho e Previdência, poderão recorrer ao benefício tributário previsto no art. 1º da Lei 6.321/1976, na forma e de acordo com os limites disposto na regulamentação da citada Lei.

 

II- Análise

 

ASPECTOS FORMAIS

2- Sob o ponto de vista do processo legislativo constitucional, não há óbice à atuação parlamentar inicial no caso, pois a matéria não se sujeita à iniciativa privativa do Presidente da República (Artigo 61 e § 1º da Constituição Federal). Não há, portanto, vício formal subjetivo.

2.1- No aspecto federativo, a proposição tem curso no Congresso Nacional, ambiente parlamentar adequado. Também está submetida ao processo legislativo pertinente à mudança/alteração pretendida, pois compete à União, por Lei Ordinária, legislar nessa matéria (Artigo 22, I da Constituição Federal).

 

ASPECTOS MATERIAIS

3- O Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, criado pela Lei nº 6.321/76 e atualmente regulamentado pelo Decreto nº 10.854/21, foi destinado prioritariamente aos trabalhadores de baixa renda, com objetivo de melhorar a condição nutricional destes.

3.1- É política governamental de melhoria da condição social do trabalhador realizada em parceria com a iniciativa privada. Não é benefício de concessão obrigatória, no qual o empregador está compelido a aderir. Tanto é que, com objetivo de incentivar a adesão, a Lei nº 6.321/76 possibilita que as pessoas jurídicas deduzam do lucro tributável (com percentual limitado), para fins de apuração do imposto de renda, o dobro das despesas comprovadamente realizadas no período-base em programas de alimentação do trabalhador previamente aprovados pelo Ministério do Trabalho e Previdência, na forma e de acordo com os limites dispostos no decreto que regulamenta a Lei.

3.2- A sugestão parlamentar, em relação ao grupo de empresas que especifica, subverte esta lógica e busca tornar obrigatório o fornecimento da alimentação ao trabalhador. A medida tem, na aparência, alto cunho social, mas na verdade acabará por prejudicar quem pretende proteger, além de extrapolar qualquer limite razoável de responsabilidade do empregador, atribuindo-lhe encargos sociais que efetivamente não lhe competem. Esta transferência de ônus que o PL busca lançar afigura-se inconcebível, não se podendo legitimar a omissão estatal em suas funções impostas pela Lei Fundamental, dentre as quais está a erradicação da pobreza e da marginalização, o que se faz, também, garantindo os direitos sociais previstos no caput do artigo 6º (direito à alimentação incluído).

3.3- A garantia estatal no que se refere à alimentação percebe-se, também e exemplificativamente, nos artigos 208, VII; 212, § 4º e 227/CF e no programa alimenta brasil (Lei nº 14.284/21). Em resumo, é prestação positiva estatal.

3.4- Essa responsabilidade, que advém de letra legal expressa, não pode ser transferida irrestritamente à iniciativa privada, pois causaria uma inversão do dever de garantia dos direitos constitucionais, inclusive. Ademais, o empregador, ao pagar o salário, está, ao fim e ao cabo, garantindo ao trabalhador sua alimentação, conforme estabelece o próprio texto constitucional (artigo 7º, IV/CF). A adesão ao PAT, que serve como complemento, é e deve continuar sendo opcional.

3.5- Mas, não é só. Ressalte-se que as hipóteses de transferência da obrigação estatal a particulares não se operam sem a existência de uma contrapartida necessária. Na proposta em análise, o intuito é efetuar a transmissão da responsabilidade à iniciativa privada sem qualquer contrapartida, o que não se mostra razoável ou conforme os princípios constitucionais, mormente quando se tem em vista não ser esta a atividade (nem fim, nem meio) da empresa.

3.6- Nem se diga que o fundamento do valor social do trabalho enunciado no artigo 1º da Constituição Federal daria guarida para tal conclusão, pois tal princípio fundamental está direcionado à valorização do trabalho como agente transformador, no que este contém de socialmente valioso, garantidor de dignidade e auxílio na redução das desigualdades e marginalização. Assim:

... Não se trata de conferir-se ao trabalho uma proteção meramente filantrópica ou de estabelecê-la no plano exclusivamente teórico. É cláusula principiológica que exprime potencialidade transformadora, diante da importância que desfruta no mundo contemporâneo pelo que representa para a própria economia, em virtude da riqueza e do crescimento econômico, como também pelo que representa como instrumento de inserção social e de afirmação do ser humano, condições imprevisíveis para que se possa atingir o ideal da dignidade humana.

É por meio do trabalho que o homem atinge a sua plenitude, realiza a sua própria existência, socializa-se, exercita todas as suas potencialidades (materiais, morais e espirituais). A partir dessas premissas, Leonardo Raup Bocorny, após destacar a importância de que goza o trabalho nos aspectos social, econômico e político, o que justificaria as garantias jurídicas outorgadas pela Constituição, afirma ser mecanismo fundamental para conter a exclusão social e, ao ter a sua valorização elevada ao patamar constitucional, determina que o desenvolvimento seja orientado no sentido de buscar combater os abusos cometidos no passado, para possibilitar a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, com condições de trabalho mais humanas e satisfazer um anseio democrático, por representar o que há de mais importante em termos de harmonia e convivência social. Pode-se, sem receio, afirmar que o valor social do trabalho representa a projeção do princípio da proteção à dignidade do homem na condição de trabalhador.

3.7- Logo, não se pode transferir um ônus do Estado ao setor produtivo por intermédio legislativo. Questões como a proposta podem, inclusive, ser fruto de livre negociação coletiva, entabulada pelas categorias, conforme a especificidade de cada setor e necessidade de seu corpo laboral, por exemplo.

3.8- Neste aspecto merece destaque a alteração introduzida na CLT pela Lei nº 13.467/17 (reforma trabalhista). Ao inserir os artigos 611-A e 611-B, reforçou a importância da negociação coletiva, estabelecendo as hipóteses nas quais a convenção coletiva e o acordo coletivo terão prevalência sobre a lei e em quais hipóteses isto será vedado. Quanto ao tema em apreço, não há vedação à tratativa via negociação coletiva.

3.9- As mudanças realizadas pela Lei nº 13.467/17 ocorreram justamente para dar força de lei a alguns pontos de negociação e com isso valorizá-la, enaltecendo e fazendo valer o que dispõe a Constituição Federal.

3.10- Não se pode ainda olvidar as consequências econômicas da medida, resultantes da elevação dos custos laborais impostos pelo PL ao empregador, que, inexoravelmente, irá ter reflexos nas relações laborais.

3.11- Tal imposição representa uma intromissão desmedida no poder diretivo do empregador. O empresário deve ser livre para tomar as decisões que melhor lhe afeiçoem para manter a saúde financeira da empresa e proporcionar seu crescimento.

3.12- Como visto, do ponto de vista estritamente jurídico, a imposição destas regras parece violar os artigos 1º, IV e 170, caput da Constituição Federal, por desrespeitar o princípio da livre iniciativa ao se imiscuir indevidamente na gestão empresarial, dificultando também a livre negociação entre as partes envolvidas, já que o tópico apontado tem também esta característica – a Justiça do Trabalho sequer impede que as normas coletivas concedam caráter indenizatório à parcela. Ao agir desta forma, a medida se apresenta contrária à ordem contida nos artigos anteriormente citados.

3.13- Acrescente-se que são mais do que conhecidas as danosas consequências a médio e longo prazos da imposição de amarras aos empregadores no que se refere à condução livre da empresa, na contramão das regras que regulam quaisquer mercados, sendo o principal deles o aumento dos custos para o setor produtivo que, por consequência, acabarão por elevar os preços para o consumidor final.

3.14- Neste sentido:

17. O art. 170 da CF, ao proclamar a livre-iniciativa como fundamento da Ordem Econômica, reconhece a liberdade como um dos fatores estruturais da Ordem. Afirma, assim, a autonomia empreendedora do homo economicus na conformação da atividade econômica. Na livre-iniciativa a liberdade expressa-se, de um lado, em termos negativos como ausência de impedimentos e expansão da própria atividade. Em termos de liberdade positiva, como participação na construção da riqueza econômica. [...]

[...] Em termos da ordem econômica, assegurar é, assim, velar para que sejam normativamente evitados impedimentos (discriminação) e promovidos reequilíbrios econômicos em situações de desfavorecimento de fato. [...]

Para bem compreendê-la é preciso levar em consideração os efeitos que a forte presença do Estado regulador na atividade econômica sobre ela exerce, quer por imposição de obrigações, de proibições, de autorizações, de estímulos e quer até por omissão normativa. Produzem-se, de fato, limitações na liberdade. Essas limitações, contudo, são mediatas, não estão contidas imediatamente na regulação normativa. Elas influenciam a motivação dos sujeitos. Assim, se o Estado impõe ou deixa de impor regras, isso condiciona os sujeitos. Isso motiva os sujeitos, mas o efeito motivador é apenas um dos efeitos possíveis. A liberdade de iniciativa, assim, está na possibilidade deixada ao sujeito de exercer o seu próprio cálculo de custo/benefício. E o direito de liberdade de iniciativa garante-se, assim, por meio de um princípio de sopesamento, capaz de equilibrar as interferências nas motivações (estatais, sociais, individuais, etc.).

A Constituição, nessa linha, consagra o mercado e a dinâmica dos agentes privados como força motriz por excelência da economia, na crença consistente de que as soluções geradas pelos agentes privados sobre o que, como e quanto produzir são as mais aptas à produção de bem-estar. Note-se que a atuação do Estado passa a ter um caráter negativo, isto é, de identificação e colocação dos limites aos agentes privados.

O Estado, nesse sentido, não exerce orientações impositivas sobre a atividade econômica, fazendo-o apena de modo indicativo (art. 174, caput). Quando ações ou operações privadas ofenderem ou ameaçarem interesses públicos relevantes como a saúde, a livre competição, a segurança, o meio ambiente, o pleno emprego, limita-se a apontar quais não serão aceitas. As orientações positivas sobre a organização da atividade privada, dentre da lei, devem partir sempre dos próprios agentes, por foça da livre-iniciativa que fundamenta e informa todo o sistema econômico.

 

III - CONCLUSÃO

4- Isto posto, o PL nº 2.548/22 não merece apoio.

 

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Eduardo Albuquerque Sant’Anna é advogado da CNI

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