O STF e a prevalência do negociado sobre o legislado

Por Fernanda de Menezes Barbosa

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EDIÇÃO 18 - Junho 2022
imagem de um aperto de mãos representando prevalência do negociado

 

 

O Supremo Tribunal Federal decidiu, no início de junho, que as previsões negociadas coletivamente prevalecem sobre as previsões legais, como expressão legítima da vontade coletiva e da adequação setorial negociada. A tese determina que “são constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis".

 

A decisão reafirmou precedentes do próprio Supremo (RE 590.418/SC e ARE 895.759/PE), os quais é fundamental relembrar, de forma a dar a adequada dimensão, relevância e aplicabilidade à decisão tomada pelo Plenário. Isso porque, já há muito, as categorias vêm sendo inseridas em situação de insegurança jurídica pela anulação judicial de previsões estipuladas em comum acordo.

 

A anulação judicial de cláusulas específicas desestimula o incremento de benefícios negociados, assim como não induz à responsabilidade e à necessidade do diálogo social (constitucionalmente previstas) das entidades sindicais envolvidas na negociação. A digressão histórica feita pelo Ministro relator, Gilmar Mendes, em seu voto, confirma essa consideração, uma vez que a agremiação de empregados, expressão da sua autonomia coletiva, se transformou em mecanismo de igualdade de forças e possibilidade de barganhas mais adequadas a cada realidade profissional.

 

Em Consulta Empresarial publicada recentemente pela CNI, metade das indústrias consultadas responderam que, após a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) - que visou consolidar a prevalência do negociado sobre o legislado - estão mais propensas a negociar benefícios e normas trabalhistas de forma coletiva.

 

Toda a estrutura de princípios da ordem constitucional aponta para o reconhecimento (respeito e não intervenção) das negociações coletivas como fruto legítimo, adequado e desejável da atuação de sindicatos livres e representativos - e foi exatamente nesse sentido que caminhou o STF.

 

Com efeito, a Constituição prevê a livre associação sindical, vedando a interferência e a intervenção estatal na sua organização, assim como prevê a participação obrigatória dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho, bem como o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais.

 

A igualdade das partes coletivas (a chamada “paridade de armas”) foi um dos princípios mais relevantes nos votos da maioria que conduziu a decisão do Supremo. Mencionado princípio de direito coletivo afasta a hipossuficiência e a irrenunciabilidade típicas do direito individual do trabalho (essa última, inclusive, já tem comportado recortes até mesmo na esfera individual) e consolida a liberdade da autonomia coletiva, sucedâneo das previsões constitucionais que conformam o sistema sindical.

 

No mesmo sentido, o princípio da adequação setorial negociada (referido expressamente na tese vinculante) prevê que as regras autônomas coletivas podem e devem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo (mesmo que restritivas de direitos), resguardadas as parcelas de indisponibilidade absoluta.

 

No contexto da prevalência das cláusulas negociadas coletivamente, foi fundamental a reafirmação de outro princípio de direito coletivo, a teoria do conglobamento, segundo a qual não se pode pretender apenas a anulação de algumas cláusulas do instrumento que, em tese, sejam contrárias ao interesse dos empregados. Essa anulação pontual e imposta resultaria em novo ordenamento autônomo, criado, no entanto, de forma artificial mediante decisão judicial, desconsideradas as premissas e as concessões recíprocas contidas no instrumento original.

 

A decisão do STF foi paradigmática por estabelecer, de forma definitiva, que não se pode transferir - como regra - a validação de disposições coletivas (notadamente aquelas de concessões feitas pela categoria profissional) ao Poder Judiciário. A necessidade de validação judicial sistemática e indiscriminada das negociações tende a impor visões valorativas específicas dos intérpretes, muitas vezes não fincadas na realidade do trabalho ou em parâmetros constitucionais objetivos, mas fundamentadas em comandos e princípios de cláusula aberta (cuja densidade normativa nem sempre se encontra desenvolvida no caso concreto – tais como dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho).

 

Ao contrário do que se argumenta em oposição ao que foi estabelecido pelo STF, a decisão de prevalência do que foi livre e autonomamente negociado não afasta o direito constitucional de acesso à justiça, tampouco a possibilidade de o Poder Judiciário declarar nula, de forma pontual, estipulação que vise a renúncia de direitos constitucionais indisponíveis. O precedente apenas confirmou que não há base constitucional para que se proteja e tutele, contínua e sistematicamente, o trabalhador em face do seu legítimo representante. Com efeito, a constante tutela judicial da atuação coletiva aprofunda, paradoxalmente, os entraves atuais tão frequentemente mencionados para o desenvolvimento de uma atuação sindical forte.

 

Espera-se que, com a finalização do julgamento, as categorias, estimuladas ao exercício de sua autonomia em tudo aquilo que não constitua o núcleo duro dos direitos indisponíveis - como os relacionados ao salário-mínimo e à anotação da CTPS - possam concretizar seus anseios com mais segurança e liberdade, certas de que serão respeitadas pelo Estado-Juiz em suas concessões recíprocas. Dessa forma, contribui-se, de forma direta, para a previsibilidade e estabilidade das normas aplicáveis a cada setor e, por consequência, para prevenção e pacificação de conflitos, bem como a captação de recursos financeiros - essenciais à manutenção da atividade econômica e dos empregos que ela possibilita, em um universo de segurança jurídica e confiança nas fontes autônomas de direito.

 

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Fernanda de Menezes Barbosa é advogado da CNI.

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