Aposentadoria e contribuição por exposição a ruído: em busca de segurança jurídica
Por Alexandre Vitorino Silva, Roberto da Cruz David, Fernanda de Menezes Barbosa e Eduardo Albuquerque Sant’Anna.
EDIÇÃO 28 - JULHO 2024
A aposentadoria especial é benefício previdenciário, espécie de aposentadoria programada, em que se concede a inativação do segurado de forma antecipada em decorrência da sua efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes.
De acordo com os contornos ditados pela Constituição, essa aposentadoria será concedida, de forma restritiva, tão-somente quando restar comprovada a efetiva exposição a agentes nocivos, desde que permanente, não ocasional nem intermitente (art. 201 da Constituição). Em outras palavras, o benefício referido exige demonstração cabal de uma situação de risco efetivo de comprometimento da saúde do segurado que trabalha em condições especiais e insalubres.
Quanto a sua fonte, o benefício será custeado levando-se em conta a chamada contribuição adicional. Contudo, a lei ressalva que ele não será devido quando a adoção de medidas de proteção coletiva ou individual neutralizarem ou reduzirem o grau de exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância.
Como se nota, o objetivo do legislador é criar um incentivo para que o empregador neutralize as condições insalubres no trabalho, seja por meio de medidas coletivas de proteção, por meio de medidas administrativas, ou, no limite, pela distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para a utilização dos trabalhadores.
O fato gerador da contribuição adicional, por isso mesmo, é a efetiva exposição e não o potencial deferimento do benefício previdenciário.
Ao apreciar, no ano já remoto de 2014, a obrigação de pagamento da contribuição especial, o STF, no julgamento do Tema 555 (ARE 664.335/SC com repercussão geral), decidiu o seguinte: a) apenas com a efetiva exposição haverá o direito à aposentadoria especial, sendo que se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial; e b) com relação ao ruído, na hipótese de exposição a níveis acima dos legais, a declaração no PPP que ateste a eficácia do EPI não é suficiente, por si só, para descaracterizar tempo de serviço especial para fins da aposentadoria.
Desafortunadamente, porém, a decisão suscitou insegurança jurídica e o entendimento equivocado de que, em se tratando do agente ruído, não haveria equipamento de proteção individual eficaz em qualquer caso, conforme se demonstrou em artigo publicado neste boletim em 2021.
Como o Tema 555 silenciou sobre a questão da intensidade do ruído, passou-se a divulgar a interpretação indiscriminada de que qualquer exposição acima do limite de 85 decibéis (Db) levaria ao pagamento da contribuição especial, mesmo que distribuído e fiscalizado o uso de EPI aprovado pela autoridade de segurança do trabalho.
Nesse sentido, a Receita Federal (RFB) adotou interpretação que a CNI considera inapropriada e, mediante entendimento ainda mais ampliativo, publicou o Ato Declaratório Interpretativo nº 2/2019, segundo o qual “ainda que haja adoção de medidas de proteção coletiva ou individual que neutralizem ou reduzam o grau de exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância, a contribuição social adicional para o custeio da aposentadoria especial (...) é devida pela empresa, ou a ela equiparado, em relação à remuneração paga, devida ou creditada ao segurado empregado, trabalhador avulso ou cooperado de cooperativa de produção, sujeito a condições especiais, nos casos em que não puder ser afastada a concessão da aposentadoria especial, conforme dispõe o § 2º do art. 293 da referida Instrução Normativa”.
Percebe-se que o entendimento, aplicável a todos os agentes nocivos (e não só o ruído), é absolutamente contrário ao que dispõe o ordenamento e não está em consonância sequer com a decisão do STF.
Não bastasse, o entendimento sufragado pela Receita não considera o fato absolutamente relevante, à luz da tecnologia hoje disponível, de que os efeitos extra-auditivos somente são considerados relevantes para a saúde humana a partir do limite de 115 Db. De 85 a 115 Db, a aplicação da tese menor do Tema 555 tem levado a uma distorção da cobrança da contribuição adicional pela RFB, sem maiores reflexões, mesmo que o EPI seja apropriado para neutralizar o ruído.
A norma da Receita, não por outra razão, tem suscitado ações anulatórias de autos de infração nas quais empresas, não obstante adotarem medidas de prevenção, neutralização e eliminação da nocividade, tentam questionar a necessidade de pagamento de contribuição adicional diante da concessão (em sua grande maioria judicial) do benefício da aposentadoria especial a seus empregados.
Repita-se, porém, que o fato gerador da contribuição adicional não é a concessão do benefício, mas a efetiva exposição, que conta com mecanismos previstos em lei de comprovação. Além disso, as empresas muitas vezes são alcançadas por autuações mesmo quando, em ações trabalhistas por tema análogo (o do pagamento do adicional de insalubridade), se sagram vitoriosas depois da realização de prova pericial.
Inconformada com esse quadro de incerteza, a CNI tem atuado intensamente para reverter as consequências resultantes de interpretações equivocadas do que o STF decidiu em 2014 e vem buscando impedir que as distorções interpretativas avancem no plano infraconstitucional. O esforço é para que os tribunais rejeitem uma desconsideração automática de todo e qualquer EPI se os limites de exposição superarem 85 Db, mas forem inferiores a 110 Db.
Por isso mesmo, a CNI participou no STJ como amicus curiae do Recurso Especial (REsp) 1.828.606/RS. No entanto, o Recurso não foi conhecido, tendo sua afetação cancelada. O assunto, porém, pode voltar a ser discutido na Corte, diante da Controvérsia 274, passível de afetação em REsp repetitivo, adiante sintetizada: "Se o que consta do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), por si só, é suficiente para provar a eficácia ou a ineficácia do EPI, na neutralização de agentes nocivos à saúde e na manutenção da integridade física do trabalhador, para fins de reconhecimento de tempo especial”.
Como se vê, a discussão sobre o pagamento da contribuição especial está a merecer novas reflexões do Poder Judiciário e da Receita federal, a fim de que seja alcançada a almejada segurança jurídica. Em suma, empresas cumpridoras da lei que tenham feito investimentos significativos em compra e distribuição de EPIs aos seus trabalhadores devem ser exoneradas, como imperativo de justiça, da obrigação de pagar a contribuição especial para a aposentadoria, justamente porque, de boa-fé, adotaram todas as medidas legais previstas para neutralizar os efeitos do ruído no seu ambiente laboral, de acordo com a tecnologia hoje disponível.
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Alexandre Vitorino Silva é Superintendente de Estratégia Jurídica da CNI. Roberto da Cruz David, Fernanda de Menezes Barbosa e Eduardo Albuquerque Sant’Anna são advogados da CNI.