20 anos da Lei de Propriedade Industrial

Parece oportuno, com o benefício de olhar em retrospectiva, fazer uma breve análise sobre o impacto desta Lei

Nuno Pires de Carvalho é mestre e doutor em Direito Econômico

Neste ano, a Lei de Propriedade Industrial (L. 9.279/96) cumpriu seu vigésimo aniversário. Parece oportuno, com o benefício de olhar em retrospectiva, fazer uma breve análise sobre o impacto desta Lei.

A propriedade intelectual é um mecanismo fundamental para o empreendedorismo. É recorrendo às suas instituições que os empresários protegem os elementos diferenciadores que introduzem em produtos e serviços: invenções, desenhos, estilos, reputação, origem. O objetivo fundamental de uma lei de propriedade industrial, bem como de uma lei de direitos de autor, é proporcionar condições para o desenvolvimento do empreendedorismo livre e competitivo.

Com isso, ganha o país: empresários querem diferenciar-se pelo aumento da qualidade e das funcionalidades técnicas e estéticas de seus produtos; aumenta o índice de inovação do país e os produtos nacionais tornam-se mais competitivos no mercado global; consumidores passam a ter à disposição mais produtos e serviços, os quais tenderão a ser de melhor qualidade e mais baratos.

Entretanto,  em 20 anos de vigência da lei de propriedade industrial, não se veem estes impactos na sociedade brasileira. A legislação modernizou o sistema de propriedade industrial brasileiro, que estava em vigor desde 1967. Introduzido pelo regime militar, o sistema obedecia a uma lógica nacionalista e protecionista do mercado doméstico. A lei de 1996, largamente influenciada pelas disposições do Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) trouxe uma lufada de ar fresco. Observe-se ainda que a lei antecipou a aplicação das obrigações do Acordo TRIPS.

A adoção da nova lei poderia corresponder a uma mudança na vontade nacional de utilizar a propriedade intelectual não mais como um instrumento de garantia de privilégios, mas como uma ferramenta à disposição do livre empreendedorismo. Mas isso não aconteceu.

Em primeiro lugar, a lei foi estabelecida pelas razões erradas. O Brasil não a aprovou porque queria adotar um sistema interno de livre concorrência, chamando os empresários a recorrer à propriedade intelectual para se diferenciarem na disputa pela preferência do consumidor. Não. O Brasil adotou a lei de 1996, de modo antecipado, porque, como disse então o presidente Fernando Henrique Cardoso, queria ter uma voz ativa nas negociações comerciais multilaterais na OMC.

Em segundo lugar, 20 anos depois, o panorama nacional da propriedade industrial revela um cenário constrangedor e disfuncional. Uma simples comparação dos números da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) revela que, em 2001, os inventores nacionais receberam do Instituto Nacional de Propriedade Industrial  (INPI)_685 patentes de invenção. Em 2014, foram 374. Em 2000, os inventores brasileiros solicitaram 3.184 patentes de modelo de utilidade -- patentes para pequenas funcionalidades externas introduzidas em objetos conhecidos.

Em 2014, o número caiu para 2.638. Os pedidos de registro de marca cresceram: em 2001, foram 89.960 pedidos, contra 127.925 em 2014. Quanto aos desenhos industriais, em 2000 os pedidos feitos por brasileiros foram 2.702. Em 2014, 3.693. Os dois últimos dados parecem promissores, mas note-se que o Produto Interno Bruto brasileiro quase triplicou no mesmo período: passou de US$ 655 bilhões para  US$ 1.775, segundo o Banco Mundial.

20 anos após a modernização da lei de propriedade industrial, o Brasil aparece em 75º lugar no Índice de Global de Competitividade (do World Economic Forum) e em 70º lugar no Índice Global de Inovação (da OMPI, da Universidade Cornell e do Instituto Insead).

Há várias explicações para o cenário. Uma delas é a disfuncionalidade do INPI, que há vários anos atrasa a concessão de títulos para além de limites razoáveis. A consequência imediata é afugentar os empreendedores nacionais do uso da propriedade industrial. Patentes e marcas concedidas de forma expedita e correta encorajam investimentos e facilitam o acesso ao crédito e ao capital de risco. Mas uma atuação disfuncional assusta os empresários nacionais, sobretudo os pequenos.

Afinal, a grande maioria das pequenas empresas tem um período curto de vida, e não sobreviveria ao backlog do INPI. Criado como instrumento de política de desenvolvimento nacional, o instituto converteu-se  numa instituição antidemocrática, que só serve de apoio às grandes empresas, sobretudo as multinacionais, as quais obtêm títulos de propriedade industrial como estratégias de concorrência, para formar seus vastos portfólios de ativos intangíveis.

Ver o Poder Judiciário ser constantemente provocado para corrigir as disfuncionalidades do Poder Executivo quanto à administração da propriedade industrial é sinal grave de que há algo de muito errado no sistema.

Em 28 de abril de 2009, quando abriu os trabalhos de uma sessão do Comitê da OMPI para o Desenvolvimento e a Propriedade Intelectual, Francis Gurry, diretor-deral da OMPI, parabenizou o Brasil pelos 200 anos de adoção de sua primeira lei de patentes, uma das primeiras do mundo.

Ele chamou a atenção para o fato de que aquela lei, ao contrário da tendência que se observaria ao longo do século XIX, havia adotado um regime no qual inventores estrangeiros receberiam o mesmo tratamento que inventores nacionais. Para Gurry isso representava, naquela época, espírito inédito de abertura do País. O delegado brasileiro agradeceu as palavras, mas ressaltou que o Brasil de hoje prefere inserir-se em negociações multilaterais.

O delegado repetia a recusa do Brasil em negociar bilateralmente com seus principais parceiros comerciais. O espírito protecionista dos anos do regime militar parecia não ter sido superado. Pior: enquanto o Brasil se entricheira nessa posição, muitos países em desenvolvimento têm aceitado elevar os níveis de proteção da propriedade intelectual no quadro de negociações bilaterais de livre comércio, bem como a assegurar o cumprimento das obrigações assumidas no Acordo TRIPS, como a proteção não discriminatória das invenções farmacêuticas, incluindo a dos dados de testes.

A consequência é que se está formando um novo acquis de propriedade intelectual no plano global, e ele constituirá o nível mínimo a ser incluído nas negociações de uma futura eventual rodada multilateral. Isto é, num plano multilateral de novas negociações, o Brasil terá que aceitar níveis de proteção que não discutiu nem negociou.

Em 2013, quando o povo brasileiro saíu às ruas para exigir melhores prestações por parte dos Poderes Públicos, ninguém se lembraria de sugerir que se pedissem também melhores práticas em sede da propriedade industrial. Mas bem que este tema poderia ter vindo à tona nas ruas das grandes cidades brasileiras. Afinal, o povo pode não saber, mas a propriedade intelectual é onipresente na vida diária dos cidadãos brasileiros. Ela é necessária não apenas para fabricantes de smartphones, aviões e  grandes e complexas moléculas biológicas.  

Sua importância se estende aos pequenos comerciantes que dependem da sua reputação honesta e que atuam nos mercados de produtos tradicionais e artesanais, por este país afora. Eles não sabem disso, e nada fazem para defender os seus legítimos interesses, mas o Governo e o Poder Legislativo sabem – ou deveriam saber – e deveriam atuar para implantar um sistema mais funcional, mais democrático e mais atento às necessidades de um povo que é empreendedor e que ama a liberdade.

Nuno Pires de Carvalho é mestre e doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre e Doutor em Direito pela Washington University in St. Louis, Missouri, EUA; ex-Conselheiro na Divisão de Propriedade Intelectual da OMC, e ex-Diretor da Divisão de Propriedade Intelectual e Políticas de Concorrência, da OMPI; sócio de Licks Advogados, Rio de Janeiro.

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