Imposição aos empregadores da obrigatoriedade do fornecimento gratuito de vacinas, assim como vedação da rescisão por justa causa na hipótese de recusa.

por Fernanda de Menezes Barbosa

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EDIÇÃO 15 - SETEMBRO 2021
imagem de uma enfermeira aplicando injeção representando imposição aos empregadores

 

1- CONTEXTUALIZAÇÃO

1.1- O projeto visa impor aos empregadores a obrigatoriedade do fornecimento de vacinas, assim como impede a rescisão por justa causa na hipótese de recusa, dentre outras providências, nos seguintes termos:

 

Seção VI-A: Da Vacinação dos Empregados
Art. 167-A. Sempre que houver vacinas eficazes contra agentes biológicos a que os trabalhadores estejam expostos, por razões diretamente decorrentes da atividade ou do ambiente do trabalho, o empregador deverá fornecê-las gratuitamente.
Art. 167-B. Cabe ao empregador assegurar que os empregados sejam informados das vantagens e dos efeitos colaterais, assim como dos riscos a que estarão expostos por falta ou recusa de vacinação, devendo, nestes casos, guardar documento comprobatório e mantê-lo disponível à inspeção do trabalho.
Art. 167-C. A vacinação, o controle da eficácia e, se necessário, seu reforço obedecerão às recomendações do órgão de saúde do Poder Executivo.
Art.167-D. Não constitui hipótese para a demissão por justa causa de empregado, nos termos do art. 482 desta Consolidação, a recusa a receber a vacina fornecida pelo empregador em programa próprio ou outra ofertada em programa público de vacinação, salvo se:
I – a vacinação for comprovadamente imprescindível para o exercício seguro das atividades do empregado no estabelecimento do empregador; e
II – o risco oferecido pela ausência de vacinação não puder ser efetivamente controlado pelo uso de Equipamentos Individuais de Proteção ou, se fornecidos esses, o empregado se recusar a utilizá-los.”
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

 

1.2- O autor em sua justificativa alega que “em tempos de pandemia, tem grassado um aceso debate sobre a autorização do empregador de rescindir o contrato de trabalho por justa causa, em caso de recusa do empregador em receber as vacinas contra a Covid 19. (...) A questão da obrigatoriedade da vacinação foi levada de forma preventiva ao Supremo Tribunal Federal – STF. Em 17/12/2020, o colegiado definiu que a vacinação compulsória pode ser implementada por medidas indiretas, como a restrição ao exercício de certas atividades ou à presença em determinados lugares. Ficou certo no entendimento do STF que as limitações podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados e Municípios, ou seja, sempre por entes estatais. De modo algum, de acordo com o egrégio colegiado, poderia o empregador, ente privado, impor a sanção da rescisão em face da recusa do trabalhador, apenas para impor o interesse público na vacinação. Esse, de modo algum, é um poder que pode ser entregue à discricionariedade do empregador, pessoa privada. Não obstante, o Ministério Público do Trabalho – MPT, conforme amplamente divulgado pela imprensa, manifestou-se por meio de um “Guia Técnico sobre vacinação/Covid-19”, orientando os empregadores a demitir os empregados que se recusarem a tomar vacina, ressalvando apenas a possibilidade de contraindicação médica. Trata-se, a nosso sentir, de orientação em desacordo com a decisão do STF, que foi taxativo e não autorizou o empregador, na condição de ente privado, a assumir função estatal e determinar sanções privativas de ente público e que devem, por força do princípio da legalidade, ser objeto de lei específica, além de, por força do bom senso, objeto de ampla divulgação pública preliminar. (...) Cabe lembrar que a demissão de trabalhadores nesses tempos de incertezas econômicas tem apenas o condão de agravar a crise social e atirar na fila do desemprego e da miséria cidadãos saudáveis e capazes. Não alcançamos o sentido de lançar mão desse expediente de modo tão ligeiro, como se fosse a única e a melhor saída nesse momento. Nesse sentido, em face da importância do tema e da controversa orientação dada pelo MPT aos empregadores, o que, a nosso sentir, apenas traz mais insegurança ao setor produtivo, sentimos ser necessário abordar o tema, positivando a questão da vacinação no âmbito da CLT. Em razão disso, nossa proposta insere uma Seção VI-A no Capítulo V do Título II da Consolidação, que trata da segurança e da medicina do trabalho, recuperando as disposições básicas sobre a vacinação no âmbito do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO, já previstas na Norma Regulamentadora nº 32, do extinto Ministério do Trabalho. Ordinariamente, evitamos a reiteração de normas já existentes no ordenamento jurídico, mas a magnitude da questão parece-nos que justifica plenamente a exceção. De fato, chamamos atenção para o item 32.2.4.17.5 da NR 32, que transformamos no art. 167-B da CLT(...) Veja-se que a NR 32 foi introduzida no nosso ordenamento pela Portaria n° 485, de 11 de novembro de 2005 e atualizada, recentemente, pela Portaria nº 915, de 30 de julho de 2019. Por esta regulamentação em vigor, temos que cabe ao empregador assegurar a informação sobre as vantagens e os riscos da vacinação. Em caso de recusa, a norma legal acima repetida é clara ao afirmar que deve o empregador “nestes casos, guardar documento comprobatório e mantê-lo disponível à inspeção do trabalho”. Eis o procedimento recomendado pelo Direito em vigor. Em nenhum momento se autoriza ou se recomenda a demissão do empregado pela recusa”.

 

2- Análise

 

Aspectos formais

 

2.1-Sob o ponto de vista do processo legislativo constitucional, não há óbice à atuação parlamentar inicial no caso, pois a matéria não se sujeita à iniciativa privativa (artigo 61 e seu §1º, da Constituição Federal).

 

2.2-No aspecto federativo, a proposição legislativa tem curso em ambiente parlamentar adequado, Congresso Nacional, e está submetida ao processo legislativo pertinente à mudança/alteração pretendida, pois compete à União, por Lei Ordinária, legislar nessa matéria (artigo 22 da Constituição Federal).

 

Aspectos materiais

 

2.3-A proposta visa inserir trecho na CLT para impor aos empregadores o fornecimento gratuito de vacinas aos empregados contra agentes biológicos a que estejam expostos, por razões diretamente decorrentes da atividade ou do ambiente do trabalho.

 

2.4-Por guardar semelhanças, cito parecer 444/21, desta Diretoria Jurídica, que analisou o PL 149/2021:

 

2.4. Preliminarmente, impedir peremptoriamente que determinada conduta seja considerada para fins de rescisão por justa causa do contrato de trabalho, ou ainda, impedir a denúncia vazia do contrato de trabalho, notadamente da forma em que proposta, esbarra no obstáculo de inconstitucionalidade material por violação à livre iniciativa e exercício da atividade econômica[1]. A autonomia privada pode autorizar que o empregador estipule determinadas normas de conduta a serem seguidas por seus empregados, especialmente se a determinação tiver como fim a proteção coletiva da saúde.

2.5. Sobre o aspecto do âmbito de proteção e do sopesamento de direitos envolvidos no aparente conflito, é importante mencionar que a situação excepcional em que vivemos requer uma visão voltada à proteção do coletivo e do social, em detrimento do exercício vazio da autonomia e liberdade individuais. É difícil defender que a mera opção (desfundamentada) do empregado possa ser validada em abstrato diante do risco de uma contaminação no ambiente de trabalho. A Constituição Federal e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal baseiam-se nesse equilíbrio de âmbitos de proteção e dimensões de direitos, especialmente quando validam restrições ao exercício de direito individual que impeça ou interfira na esfera coletiva[2].
2.6. Ainda que a COVID-19 seja uma doença pandêmica - que não pode ser considerada ocupacional sem que se obedeçam aos requisitos legais (comprovação de nexo de causalidade)[3] - é inegável que cabe ao empregador zelar pelo meio ambiente de trabalho sadio. E, em meio a medidas de saúde e segurança atreladas à atividade desenvolvida por seus empregados, estão medidas de saúde e integridade vinculadas à saúde pública, como, por exemplo, medidas de prevenção à COVID-19.
2.7. Para além, falta razoabilidade à determinação legal de que uma dispensa sem justa causa, que tenha como fim a proteção da saúde coletiva, possa ser considerada discriminatória. No ponto, a demissão seria a ultima ratio que caberia ao empregador, notadamente diante do alargamento da imposição de sua responsabilidade no que concerne à expansão dos casos de COVID-19. Prever peremptoriamente que essa é uma conduta inaceitável é excluir do empregador a análise dos pormenores a depender de cada circunstância, sejam elas individuais de cada empregado, regionais com relação ao crescimento do número de casos, ou ainda específicas da atividade e da organização do modo de produção (possiblidade de formas alternativas de prestação de serviço como o teletrabalho).
2.8. Para além das ponderações feitas até aqui, existem mais questões que envolvem a consequência jurídica da não vacinação de empregado. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 6586 (cujo acórdão encontra-se pendente de publicação) entendeu que a vacinação é compulsória, mas não forçada, prevendo ser possível o estabelecimento de medidas restritivas de direito pelos entes federativos dentro das respectivas competências, desde que respeitadas determinadas condições. Segue abaixo, o extrato da decisão:
 

(I) A vacinação compulsória não significa vacinação
forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de
medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou
à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e
(i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes,
(ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos
imunizantes,
(iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas,
(iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e
(v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; e
(II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos
Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência

 

2.9. A decisão acima não considerou diretamente a relação empregatícia, tendo respondido o tema sob o ponto de vista de medidas de Governo diante da recusa social a vacinar-se contra a COVID-19. Esse ponto é relevante pois a decisão parece não alcançar a competência do empregador para instituir as chamadas medidas indiretas de implementação da vacina.

2.10. Mais além, ainda é objeto de debates a exata delimitação da responsabilidade do empregador nesse contexto de pandemia (que muito ultrapassa os limites do ambiente de trabalho da atividade desenvolvida). Parece natural a possibilidade da imposição da vacinação a seus empregados diante de um contexto de invariável obrigação por parte do empregador por toda e qualquer contaminação ocorrida em seus quadros de um vírus pandêmico de transmissão comunitária há mais de um ano no país (que já conta com diversas variantes e mutações que permitem a reinfecção).
2.11. Em outros termos, seria incongruente responsabilizar amplissimamente o empregador por um lado e, por outro, impedi-lo de realizar a última medida possível para garantir a redução da transmissão da doença e da ocorrência de seus casos mais graves.
2.12. Sobre o tema, o Ministério Público do Trabalho publicou, em janeiro de 2021, "Guia Técnico Interno do MPT Sobre Vacinação Da Covid - 19"[4] e, no que se referem às repercussões da vacinação nas relações de trabalho, concluiu, em resumo, que incumbe ao trabalhador colaborar com as políticas de contenção da pandemia da COVID-19, não podendo, salvo situações excepcionais e plenamente justificadas, opor-se ao dever de vacinação. Prossegue prevendo que a recusa injustificada pode ser alvo de sanções disciplinares, mas, antes, deve ser observado o dever de informação e convencimento e a possibilidade de afastamento do empregado para realizar suas atividades em teletrabalho. Apenas caso todas as medidas de convencimento falhem, e sendo impossível o trabalho remoto, a demissão por justa causa seria lícita

2.13. Percebe-se que a interpretação conjunta dos elementos normativo-jurídicos vigentes pode apontar para a responsabilidade ampla do empregador. Somar a isso a vedação legal de demitir por ou sem justa causa empregado que se recusa a vacinar-se é deixar à própria sorte todos os empregadores, impedidos que estarão de utilizar seu poder diretivo, que decorre diretamente da assunção do risco da atividade econômica.
2.14. Nesse sentido, repise-se, a proposta não oferece solução jurídica viável para a questão, que é mais complexa e ampla, sendo mais razoável a possibilidade de o empregador, tendo cumprido com suas obrigações dentro do limite legal, avaliar as medidas internas a serem tomadas, assim como as possíveis rescisões de contrato de trabalho. (grifos nossos)
 

2.5-A mesma conclusão do parecer acima opera-se à presente proposta, ainda que sua redação restrinja a empregados expostos em decorrência do trabalho. Há que se relembrar das fronteiras entre a obrigação do empregador decorrente da atividade econômica que explora e aquelas típicas de Estado, de saúde pública, que envolvem, por exemplo, o combate de doenças endêmicas e pandêmicas por meio da inserção de vacinas no Programa Nacional de Imunização.

 

2.6-A inserção na CLT de norma regulamentadora que conta com obrigações específicas da área de saúde (Norma Regulamentadora 32 - Segurança e Saúde no Trabalho em Serviços de Saúde) não nos parece medida razoável ou salutar, tampouco se trata de reiterar norma vigente, uma vez que a sua imposição está restrita a trabalhadores que, pela natureza de seu trabalho, estão expostos a riscos biológicos, como o Coronavírus (causador da COVID-19).

 

2.7-Igualmente, é importante frisar que o Ministério Público do Trabalho não orientou de forma objetiva e imediata a demissão por justa causa do empregado que se recusasse a vacinar-se, ao contrário, como pontuado no parecer citado, a orientação do parquet causa insegurança jurídica ao deixar o empregador sem soluções objetivas a um problema que se aproxima, pontuando que a rescisão seria a ultima ratio.

2.8-Da mesma forma, como esclarecido no parecer acima, a decisão do Supremo Tribunal Federal não se debruçou e pareceu não considerar o âmbito das relações de trabalho. Isso significa que não se pode importar seus fundamentos sem as necessárias ponderações e adaptações à realidade diversa.

 

3 - Conclusão

 

3.1-Nesse sentido, pelo não apoio.

 

 

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1[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. (...)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

 

2[2] CF, art. 5º(...) XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial
STF
Ante conflito entre a liberdade de expressão de agente político, na defesa da coisa pública, e honra de terceiro, há de prevalecer o interesse coletivo, da sociedade, não cabendo potencializar o individual. [RE 685.493, rel. min. Marco Aurélio, j. 22-5-2020, P, DJE de 17-8-2020, Tema 562.]

 

3[3] Lei 8213/1991 Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. (Redação dada pela Lei Complementar nº 150, de 2015) § 1º A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador.
§ 2º Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho.
§ 3º É dever da empresa prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a executar e do produto a manipular.
§ 4º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social fiscalizará e os sindicatos e entidades representativas de classe acompanharão o fiel cumprimento do disposto nos parágrafos anteriores, conforme dispuser o Regulamento.
Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas: I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;
II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.
§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:
a) a doença degenerativa;
b) a inerente a grupo etário;
c) a que não produza incapacidade laborativa;
d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
§ 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho. (grifo nosso)

 

4[4] https://mpt.mp.br/pgt/noticias/para-mpt-vacinacao-contra-a-covid-19-e-direito-dever-de-empregadores-e-empregados acesso em 03/03/2021.

 

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Fernanda de Menezes Barbosa é advogada da CNI

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