Benedito Braga conta como São Paulo superou a pior crise hídrica dos últimos 85 anos

Em conversa com a Agência CNI de Notícias, o presidente do Conselho Mundial da Água e secretário de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo revelou quais medidas adotou para superar a crise hídrica no estado e como o Brasil pode se preparar para um futuro com menos água disponível


A crise hídrica enfrentada por São Paulo em 2014 e 2015 foi sem precedentes. Superou o ano de 1953, o mais seco dos registros. Diante da experiência paulista, a equipe de reportagem da Agência CNI de Notícias conversou com exclusividade com o Presidente do Conselho Mundial da Água e secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo, Benedito Braga. Ele conta quais medidas foram tomadas para superar a crise, traça um panorama hídrico do Brasil e mostra como nos prevenir de possíveis novos casos. Acompanhe abaixo a entrevista completa:

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Qual era o cenário da água em São Paulo quando o senhor assumiu, e que avanços foram feitos de lá para cá? Quais eram os principais desafios de quando o seu mandato iniciou e os de agora?

BENEDITO BRAGA - Assumimos a Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos em janeiro de 2015, no auge da crise. O Governo do Estado, a Sabesp e os nossos antecessores já vinham tomando uma série de medidas. Nosso papel foi o de nos juntar a esse esforço, trazendo a experiência que temos da área acadêmica, do setor de regulação e da atuação em organismos internacionais, como o Conselho Mundial da Água. Conseguimos ajudar a acelerar as obras necessárias, e, ao mesmo tempo, aumentar o diálogo com os envolvidos no trabalho de combate à crise e, destes, com a sociedade, procurando dar mais transparência às decisões e ações. Naquele momento, era importante também dar tranquilidade à sociedade sobre a situação.

É preciso lembrar que a afluência registrada em 2014 foi metade da de 1953, que era a referência anterior de ano mais seco em 85 anos de registros. Em seguida veio 2015, que também foi um ano de poucas chuvas. Ou seja, foi um fenômeno que surpreendeu a todos. Estávamos preparados para uma situação até pior do que a de 1953, mas não tão abaixo assim em termos de afluência. Para se ter uma ideia, a probabilidade de acontecer um evento como este é de apenas uma vez a cada 250 anos. Para combater essa aguda crise hídrica, as ações se basearam em três pilares: obras emergenciais para aumentar a disponibilidade de água; conscientização da população sobre a necessidade de modificar o padrão de consumo; e o aumento da interligação dos sistemas, possibilitando que aqueles que estavam em melhor situação ajudassem a atender áreas até então abastecidas pelos sistemas mais afetados pela seca.

Paralelamente, a mudança de comportamento da população, incentivada por programas de conscientização e aplicação de bônus e ônus, gerou uma redução média de 15% no consumo após a crise. Ou seja, a crise hídrica nos fez antecipar obras e ações, mas também acelerou o nosso aprendizado. Não só dos gestores e técnicos, mas de toda a sociedade.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Em São Paulo, houve racionamento como uma das ferramentas para controlar a crise? Após esse momento, o senhor observou uma verdadeira mudança de comportamento da população em relação ao uso dos recursos hídricos?

BENEDITO BRAGA - Em São Paulo não houve a aplicação do racionamento ou rodízio, que é quando uma determinada região fica um determinado número de dias com água e outros sem. Aqui, como dissemos acima, houve políticas de estímulo à economia de água, como o bônus e, mais tarde, a multa, além de campanhas educativas. Também foi intensificado o processo de redução de pressão, quando há diminuição da pressão hidráulica nas tubulações. Em geral no período da noite, quando há menor consumo. E isso diminui as perdas de água por vazamentos.

Com a redução de pressão, em locais mais altos e mais distantes houve intermitência no abastecimento durante algumas horas, mas nunca o dia inteiro. E mesmo nos locais com intermitência, o período de pleno abastecimento era suficiente para encher a caixa d’água. Como é norma da ABNT, todo imóvel ter caixa d’água com capacidade para o mínimo de 24 horas, a grande maioria da população sentiu pouco os efeitos de uma seca de proporções nunca antes registradas na região e que, se não tivessem sido tomadas as medidas corretas, poderia ter parado São Paulo com graves repercussões econômicas e sociais.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Como o senhor analisa o papel da indústria no planejamento hídrico sustentável de uma região?

BENEDITO BRAGA - As indústrias têm papel fundamental na expansão da economia e como fomentadoras de novas tecnologias. O papel delas na questão hídrica vai desde o planejamento, na escolha de locais que atendam a necessidade de abastecimento da atividade específica desenvolvida, até o uso racional com equipamentos que possibilitem maior aproveitamento dos recursos e também a reciclagem e o reuso da água. É importante também desenvolver programas internos que estimulem os funcionários a adotar comportamentos de uso racional da água. Sabemos que a grande maioria das indústrias já faz o seu papel nesse aspecto, e isso é fundamental para a manutenção dos recursos hídricos.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Como a questão hídrica impacta na vida das pessoas de uma cidade como São Paulo, na geração de empregos e na produtividade industrial? Como é possível aliar crescimento com redução do consumo de água?

BENEDITO BRAGA -
A disponibilidade hídrica é um dos fatores de atração de indústrias. Por isso a importância das autoridades regionais e da população se engajarem na preservação dos recursos naturais. Ao adotar o uso racional, as indústrias se somam a este esforço num ciclo virtuoso que atrai mais investimentos, mais empresas e impulsiona o desenvolvimento econômico e social regional. Redução de consumo de água também significa diminuição de custos e economia para as indústrias, o que é importante num período de crise econômica como o que vivemos. O setor de recursos hídricos, vale lembrar, também é um dos maiores geradores de empregos. A obra de interligação Jaguari-Atibainha, por exemplo, gera cerca de 5.300 empregos diretos e indiretos, e o novo Sistema Produtor São Lourenço, aproximadamente três mil.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Quais as condições da capacidade de abastecimento do Brasil em um futuro de curto, médio e longo prazo?

BENEDITO BRAGA -
O Brasil é um país de extensão continental e com climatologia bastante variada, com condições hídricas também muito diferenciadas. A Amazônia, por exemplo, concentra 7% da população do País e conta com 70% dos recursos hídricos. Já o Nordeste tem 30% da população e apenas 3% da água doce disponível. Mesmo assim, essas situações de maior estresse hídrico podem ser resolvidas a médio e longo prazos com investimentos em infraestrutura e gestão da demanda, como aconteceu em São Paulo. O nosso país tem uma das maiores reservas de água doce em estado líquido do mundo, o que nos torna uma região com recursos importantes, atraindo a atenção mundial e investimentos para o futuro. Precisamos estar preparados para isso. Não apenas cuidando dos recursos existentes, mas também tornando-os disponíveis por meio de infraestrutura adequada.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Outras grandes metrópoles ao redor do mundo já passaram ou estão passando por crises hídricas, como a Califórnia, nos Estados Unidos. Que lições podemos tirar de crises ocorridas em outros países? Algum modelo a ser seguido?

BENEDITO BRAGA -
A lição que temos de outros países é que, em regras gerais, não há uma solução única para todas as situações. Ou seja, não há um “tamanho único”, uma receita pronta para todos os problemas. Cada caso é diferente e a solução normalmente envolve um portfólio de ações que incluem iniciativas como reuso; utilização de água superficial e água subterrânea; adoção de comportamento racional, por parte da população; instrumentos econômicos que incentivem o uso eficiente e; principalmente, a geração da infraestrutura necessária. No caso de São Paulo, boa parte da infraestrutura que estamos construindo, como a ligação Jaguari-Atibainha, é de redundância, ou seja, será utilizada apenas quando houver necessidade. O grande aprendizado que tivemos aqui em São Paulo é que a solução advém da combinação de infraestrutura com a mobilização da população para um consumo eficiente e racional.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS - Que projetos e políticas, além do racionamento, podem ser usados para prevenir crises hídricas futuras?

BENEDITO BRAGA -
Estamos hoje certamente melhor preparados para o enfrentamento de uma crise semelhante a 2014/2015. Investimos muito em infraestrutura e a população está consumindo de forma mais eficiente e racional. É preciso planejamento - antecipando situações críticas - e gestão de demanda. Precisamos estar cada vez mais preparados porque a variabilidade do clima tende a aumentar, com períodos de chuvas cada vez mais fortes e secas cada vez mais severas. Aqui em São Paulo, em construção e com previsão de início da pré-operação ainda para este ano, temos o Sistema Produtor São Lourenço, que gerará mais 6,4 m3/s de água, e a Interligação Jaguari-Atibainha, que pode bombear até 8,5 m3/s de água bruta do Vale do Paraíba para a Grande São Paulo. E devemos começar ainda este ano as obras de captação do Itapanhaú, com 2 m3/s de água bruta para o Sistema Alto Tietê, e as duas barragens de Pedreira e Duas Pontes, que garantirão o abastecimento na região de Campinas com uma vazão regularizada de 8,5 a 8,7 m3/s.

SAIBA MAIS - Benedito Braga é Presidente do Conselho Mundial da Água, secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo e professor Titular de Engenharia Civil e Ambiental na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) (afastado para exercer a função de Secretário de Estado). É Ph.D em recursos hídricos na Stanford University, Estados Unidos.

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